Logo Sociedade Ponto Verde

TRABALHO POR GOSTO. E NÃO ME CANSO.
Trabalho por gosto. E não me canso.
2013-11-26
Trabalho por gosto. E não me canso.

Para eles não há picar o ponto nem fretes laborais: fazem exactamente aquilo que gostam.

E gostam tanto e de tanta coisa que cruzam interesses e dedicam-se a profissões aparentemente diferentes.

 

O sorriso rasgado e sincero é o mesmo, seja numa consulta de medicina tradicional chinesa, seja em palco, enquanto vocalista da banda A Naifa ou como actriz numa peça de teatro. Antónia Mendes, mais conhecida por Mitó Mendes, é pouco fiel em termos profissionais. Não é mulher de um só interesse e tem energia que nunca mais acaba. Só assim se compreende que este ano, ao mesmo tempo que desenvolveu o seu trabalho como terapeuta na clínica que criou em Lisboa, tenha representado duas peças de teatro de Garcia Lorca, das quais uma no Brasil, tenha dado voz a concertos de A Naifa no país e no estrangeiro, e tenha ainda gravado um novo álbum com a banda. O que para muitos seria uma agenda anacrónica e uma vida extenuante, para Mitó é um verdadeiro prazer. “Há dias em que estou um bocado cansada, mas não há um dia em que acorde de manhã e não me apeteça ir para a clínica. Nenhum, por muito cansada que esteja”, garante.

Para Maria da Glória Ribeiro, fundadora e managing partner da Amrop, consultora de executive search, “gostar-se do que se faz e trabalhar com gosto sempre foi muito importante para o potenciar das nossas capacidades “hard” e “soft”, e portanto para a evolução na hierarquia de factores que nos ajudam a chegar à percepção de realização profissional”. Mas em termos de evolução civilizacional houve uma alteração que se deve ao facto “de sermos cada vez mais conscientes da necessidade de equilíbrio, respeito e ‘iqualidade’. Por isso hoje somos mais atentos e mais exigentes em relação à nossa própria realização”, explica.

 

Música açucarada  

 

Muito antes de se conhecerem (e de se apaixonarem) Gabriela Fernandes e Diogo Chaves já partilhavam dois interesses: música e doces. Ambos encontram no ambiente familiar as origens daquilo que viriam a ser anos mais tarde. Gabriela toca piano, Diogo guitarra. E os dois confeccionam doces com arte, gosto e mão certeira. Tão certeira que as encomendas não páram, ultrapassando as expectativas do jovem casal, que se conheceu na escola de música onde leccionam os instrumentos que tocam.

“Comecei aos 4/ 5 anos a estudar piano”, recorda Gabriela. “Em casa da minha avó existia um piano, a minha mãe tinha tocado um bocadinho quando era miúda. Sempre houve música em casa, não só a ser tocada como a ser ouvida”. Gabriela fez o Conservatório e estudou arquitectura. “Cheguei a fazer a licenciatura e a iniciar o mestrado, mas o piano foi mais forte”, reconhece. Diogo também cresceu acompanhado por notas musicais. “Andávamos muito de carro e o meu pai tinha sempre muita música”. Em casa dos avós havia uma guitarra, que pertencera ao pai. “Como ia lá muitas vezes, pegava na guitarra e ia brincando, tirando sons, experimentando. Num misto de aulas e muito autodidactismo fui conseguindo desenvolver-me”, conta. Pelo meio interessou-se por engenharia e arquitectura. “Tive oportunidade de ter essas experiências e tornaram as coisas mais claras em relação ao que não queria fazer”, sublinha.

Juntos enquanto casal deram forma a outro gosto comum, que também remonta aos tempos de infância: confeccionar bolos. “Havia doces que eu gostava de fazer, outros que o Diogo gostava de fazer, e gradualmente começámos a passar mais tempo na cozinha”, conta Gabriela. “Era uma coisa que nos entusiasmava e dava gozo”. E terá ligação à música? “Há um momento criativo muito semelhante à produção de música, porque cada elemento da confecção é como se fosse um elemento/fragmento musical que depois se transforma em algo um pouco maior. Um pão-de-ló é mais do que os ovos, o açúcar e a farinha. Nesse aspecto acho que inconscientemente tinha essa noção de um todo maior do que as partes”, explica Diogo.

 

De gosto a profissão

 

Ela mais intuitiva, ele mais teórico, Gabriela e Diogo passaram “de um processo de fazer a receita para afinar a receita”, e incentivados por familiares e amigos, criaram a DoceDoce. Entre aulas de música, passam horas a preparar encomendas. Tudo é feito por eles, desde a escolha dos ingredientes à entrega do produto. E tudo foi pensado ao pormenor, para que o cliente tenha uma experiência personalizada. O segredo? Paixão e organização. “Somos quase compulsivos”, brinca Diogo. “Temos uma organização saudável que nos permite ter o controlo, manter a ordem”.

Também Mitó Mendes tem na organização um factor essencial. E desde cedo. Foi assim que, depois de ter estudo música no Conservatório e ter desistido de Filosofia após três anos da licenciatura, cantava em duas bandas, estudava medicina tradicional chinesa e ainda fez um curso de dois anos de teatro. “Sempre fui uma pessoa que não consegue fazer apenas uma coisa de cada vez”, assume. No último ano do curso de teatro surgiu A Naifa, que integrou desde o início na companhia João Aguardela e Luís Varatojo. E no quinto ano do curso de medicina chinesa, o último, andou em digressão pelo país em época de exames. “Foi complicado”, assume. Mas ela leva o dia-a-dia com ligeireza, mesmo em alturas especialmente atarefadas como este ano. “Houve uma fase em que ia de manhã dar consultas, a seguir ao almoço ensaiava com a banda, dava consulta das 18h e das 19h e depois ia ensaiar para o teatro”, recorda Mitó. “É o que eu adoro! Não ando a fazer favores a ninguém”.  

“Tenho muitas desvantagens em trabalhar por conta própria, mas ter uma clinica e dar consultas é uma vantagem”, afirma. Permite-lhe gerir a própria agenda de acordo com datas de digressão, espectáculos, estreias... Até porque “abrandar não casa comigo. Prefiro deixar de lado”, sublinha. “Qualquer um dos trabalhos que tenho é pura paixão, não há nenhum que seja mais trabalho e outro mais gozo”. E todos têm um ponto em comum: “Para a medicina chinesa não há um tratamento standard. Aquela pessoa é única e o diagnóstico vai ser diferente de qualquer outra. Também tem qualquer coisa de artístico”, reconhece.

Maria da Glória Ribeiro recorda que “muitas pessoas encontram o equilíbrio pessoal e busca à realização através de complementaridade de actividades ou “hobbies”. Outras “cortam” com a profissão original e abraçam actividades diferentes e pouco prováveis de imaginar. Tudo isso é legítimo e muito adequado”. Contudo, ressalva: “Tem de ser adaptado à nossa maneira de ser, à forma como queremos viver a nossa vida”. Afinal, quem corre por gosto não se cansa. 

DESCUBRA AINDA