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UMA OUTRA BOLSA É POSSÍVEL
Uma outra bolsa é possível
2011-03-01
Uma outra bolsa é possível

Celso Grecco criou a Bolsa de Valores Sociais no Brasil e em Portugal. A ideia é que indivíduos e empresas invistam em organizações com potencial para resolver problemas sociais.

No final dos anos noventa Celso Grecco, 48 anos, era um publicitário de sucesso que aspirava trabalhar a tempo inteiro em prol do desenvolvimento social. Por essa altura os empresários brasileiros perceberam que a responsabilidade social era fundamental para a imagem das suas marcas. Celso viu uma oportunidade para cumprir o seu sonho e, em Dezembro de 1999, criou a Atitude, consultora em responsabilidade social e sustentabilidade. Quando a Bovespa (Bolsa de Valores do Brasil) o abordou, ele propôs aliar o investimento social e o know how do cliente. Assim, em 2003, nasceu a primeira Bolsa de Valores Sociais (BVS) do mundo. O funcionamento é simples: tal como na bolsa convencional os investidores podem adquirir acções, mas de projectos sociais criteriosamente seleccionados, e acompanhar passo a passo o progresso do seu investimento. A diferença é que nesta bolsa o lucro é medido pelo desenvolvimento social alcançado.

Apesar do sucesso e reconhecimento internacional, a iniciativa tarda em replicar-se. Em 2009 Portugal tornou-se no segundo país do mundo a ter uma BVS.

 

Quando tinha 14 anos participou em acções de solidariedade, como levar roupa e alimentos a um hospital psiquiátrico. Na altura morava com os seus tios. Foram eles que lhe incutiram preocupações sociais?

Pensei nisso recentemente e descobri um episódio que ocorreu quando tinha 10 ou 11 anos. Ainda morava com os meus pais, numa pequena cidade no interior do Estado de S. Paulo. Perto do Natal eu e o meu irmão decidimos dar brinquedos velhos e roupas que não usávamos às crianças da favela ao lado da nossa casa. Os nossos pais concordaram. Esperámos pela hora de saída da escola e chamámos as crianças. Elas vieram com as mães e distribuímos tudo que tínhamos. Empolgados, fomos à cozinha da nossa casa e começámos a dar panelas e tachos. Quando a nossa mãe chegou havia um tumulto à porta da cozinha – já distribuíamos pratos, panos de cozinha, etc.

 

Ela não deve ter ficado contente…

Não, mas acho que não apanhámos.

O meu avô, que era português, foi quem me transmitiu uma visão humanista do mundo. Há uma pequena diferença entre a visão filantrópica e a humanista. A primeira leva a que, perante alguém com fome ou frio, dêmos comida ou agasalhos. A segunda procura ajudar essa pessoa a desenvolver-se e a ter condições minimamente semelhantes às nossas.

 

Em 1993 criou a Aldeia do Futuro, ONG que visa profissionalizar e educar jovens e mulheres. Como surgiu a ideia? Ainda está envolvido nesse projecto?

Já não estou envolvido directamente. A Aldeia do Futuro foi uma aprendizagem muito importante. Na altura tinha uma agência de comunicação, com uma equipa de criativos, e ajudávamos organizações sociais, fazendo panfletos ou logótipos. Certo dia um empresário abordou-nos. Disse-nos que tivera uma infância muito pobre, mas conseguira vencer na vida. Ele comprara um terreno de 3.000 m2 no bairro onde cresceu e construíra um prédio de 1.000 m2. O edifício não estava concluído porque ele não sabia que finalidade dar-lhe, mas estava disposto a terminar a obra desde que alguém lhe dissesse o que fazer. Aceitámos o desafio e pensámos em transformar o prédio numa creche. Pesquisámos preços de berços e do resto do equipamento, mas como não conhecíamos o bairro não sabíamos quantas pessoas usufruiriam do serviço. Ao fim de três meses fomos até lá. Para nossa decepção havia 17 creches no bairro, mas só acolhiam crianças até aos 13 anos e 11 meses. Depois saíam. Uma criança de 14 anos numa favela não vai para a escola; vai arrumar carros ou pedir na rua para levar dinheiro para casa. Então optámos por um centro de juventude – a Aldeia do Futuro – ao qual presidi durante cinco anos. Esta experiência foi um soco no estômago. Estávamos a pensar com o coração e íamos gastar o dinheiro daquele empresário em berços e brinquedos. Aprendi que não temos o direito de brincar e errar quando a questão é social. Temos de ser pragmáticos e profissionais porque estamos a lidar com a vida das pessoas.

 

No final dos anos 90, antes de criar a Atitude, disse que o seu objectivo era “trabalhar muito, ficar rico, reformar-se, e dedicar-se a um projecto meritório de solidariedade”. Ficou rico, ou houve mudança de planos?

Achava que teria de ficar rico ou reformar-me numa condição que me permitisse fazer o que mais gostava: envolver-me em causas sociais. Achava que tínhamos de fazer opções, que a vida era feita de “OU”, ou se ganha dinheiro ou envolvemo-nos em projectos sociais. Descobri que a vida é “E”: posso seguir a minha carreira e mobilizar as minhas capacidades – sou especialista em branding e comunicação – para satisfazer a minha vocação social. E posso fazê-lo a tempo inteiro, de forma profissional.

 

Teve uma conversa com o então Presidente Lula da Silva sobre a BVS. Como surgiu esse encontro?

A BVS foi criada em 2003. Na altura, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, quis conhecer o projecto. Então, fui a Nova Iorque e fiz uma apresentação. Ele ficou encantado com a ideia e até fez uma recomendação expressa para que todas as bolsas do mundo considerassem adoptar o projecto. Um ano depois a ONU apelou para que se encontrassem novos mecanismos de combate à pobreza. Setenta países comprometeram-se a estudar o assunto. Brasil, Espanha, França e Chile formaram um grupo de trabalho mandatado pelos restantes. Um ano depois apresentaram três soluções à ONU. Todas foram rejeitadas. Então, o embaixador brasileiro na ONU informou o ministro das Relações Exteriores de que, no âmbito de mecanismos financeiros inovadores, já havia uma ideia brasileira e que merecera a aprovação do secretário-geral da organização. O ministro contactou-nos e marcou uma audiência com o Presidente Lula.

 

Como correu a conversa?

Ele ficou encantado. Quando estávamos na ante-sala à espera para entrar o chefe de gabinete disse-nos que teríamos 15 minutos porque havia outra audiência a seguir. E aconselhou: “Diga tudo em dez minutos, porque a partir do 11º o Presidente começa a pensar na próxima audiência”. O Presidente estava à porta e cumprimentou-nos com um abraço. Ele é absolutamente carismático. Sentámo-nos e contei a história toda em dez minutos. Achou muito interessante e começou a fazer perguntas. O chefe do gabinete disse que estava na hora, e que o ex-presidente José Sarney e o ex-presidente do senado Federal Renan Calheiros estavam à espera. O Presidente Lula disse: “Calma”, – e chamou mais pessoas para ouvirem a conversa. O chefe de gabinete insistiu em mais duas ocasiões e Lula respondeu: “Calma. Quando eu era sindicalista ele deu-me muito chá de cadeira. Deixa-o tomar um agora”. A audiência durou hora e meia.

Em 2008 disse que Inglaterra e Alemanha lançariam BVS, e depois Índia, Nova Zelândia, Portugal e Tailândia. No entanto, a iniciativa só arrancou em Portugal. O que correu mal nos outros casos?

Quando lançámos a BVS em Portugal fizemo-lo como projecto-piloto para a rede Euronext, que inclui as bolsas de Nova Iorque, Amesterdão, Paris, Bruxelas e Lisboa. A partir do momento em      que assinámos este contrato não seria ético abordar outras bolsas.

 

Quais as principais diferenças entre a BVS em Portugal e no Brasil?

Há três diferenças principais. A primeira é que no Brasil a Bovespa decidiu apoiar projectos destinados à faixa etária dos 5 aos 25 anos. Por um lado considerou-se que haveria pouca interacção com os menores de 5 anos. Por outro, um estudo revelara que mais de 90% dos presos tinham no máximo 25 anos e, assim, pensou-se que esta seria a população em que faria mais sentido investir. O Brasil está bem do ponto de vista económico, mas precisa de apostar na educação e na luta contra a violência. Em Portugal os projectos incluem a infância e a terceira idade. No entanto, devido à crise que o país enfrenta, estamos a reposicionar a BVS para estimular projectos que criem riqueza e emprego.

A segunda é que a plataforma tecnológica é mais avançada em Portugal. No Brasil, como está armazenada no site da Bovespa, há questões de segurança que limitam o acesso às redes sociais, o que implica menor interactividade.

A terceira é que no Brasil a Bovespa assegura as despesas de funcionamento da BVS e em Portugal são a Euronext, Caixa Geral de Depósitos, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação EDP.

 

A BVS foi criada com uma linguagem que aproxima as organizações sociais e as empresas que querem investir em responsabilidade social. No entanto, a BVS portuguesa conta com cerca de mil investidores particulares e dez grandes empresas. Estes números estão de acordo com as suas expectativas?

Não. Queremos mais. Lançámos a BVS em Novembro de 2009. A receptividade foi boa, mas o ano estava praticamente terminado. Ao longo de 2010 os empresários alegaram efeitos da crise para não investir, mas ainda conseguimos o contributo de dez empresas. Em 2011 vamos reforçaremos a estratégia de abordagem às empresas. Teremos bom desempenho porque a BVS é um conceito que as empresas apreendem rapidamente. Os cerca de mil investidores particulares deixam-nos muito satisfeitos, mas também queremos mais.

Foi eleito membro da Ashoka em 2006. Em 2008 recebeu o prémio Vision Awards das mãos de Muhammad Yunus, Prémio Nobel da Paz. Em Dezembro desse ano foi homenageado na sede da ONU, em Nova York. Revistas como a Newsweek e o Der Spiegel colocaram-no ao lado de filantropos ricos e famosos. O que é que significa para si este reconhecimento? Ajuda o seu trabalho na BVS?

Honestamente, sinto-me vaidoso e agradecido. Mas não sou rico nem filantropo. O trabalho na BVS implica conversar com presidentes de bolsas, gestores de marketing e directores de empresas e convencê-los a romper um paradigma. Falamos a mesma língua – fiz carreira no sector privado –, mas o reconhecimento de instituições como a Ashoka e a ONU, e as revistas que colocam-me a par de personalidades, como Angelina Jolie, Bill Clinton, Bill Gates e Richard Branson, conferem-me a reputação de um trabalho sério. Isso faz com que estejam disponíveis para ouvir o que tenho para dizer. E isso é o mais importante.

Quantas candidaturas receberam em Portugal e quantos projectos estão cotados na BVS?

No primeiro ano recebemos 130 candidaturas. Em Janeiro passado já recebemos 15, pelo que a média deve crescer ligeiramente. A BVS contempla 25 projectos. Em breve esperamos que três deles alcancem 100% do financiamento pretendido, pelo que entrarão três novas organizações.

 

Qual a principal razão para os projectos serem rejeitados?

Colocarem o olhar na consequência e não na causa, isto é, atacam o problema, mas não a solução para o problema. A assistência social é importante e é urgente, mas não é a nossa função. Bill Drayton, fundador da Ashoka, diz que o empreendedor social não dá o peixe, nem a cana de pesca, nem ensina a pescar, mas é alguém que não descansa enquanto não muda a lógica da indústria da pesca. A BVS apoia projectos que desafiam a lógica instalada.

É por isso que diz que as organizações sociais em que se deve investir são aquelas que funcionam como laboratório?

Usei essa expressão num fórum em que se discutia como fazer crescer e replicar projectos válidos. As organizações não têm de crescer para resolver problemas sociais, porque não têm capacidade financeira e logística para isso. Prefiro vê-las como laboratórios a produzir vacinas. Se um laboratório criar uma vacina contra a febre-amarela, não se espera que seja o próprio laboratório a efectuar campanhas de vacinação em diferentes partes do mundo. Isso é algo que compete aos governos através de políticas públicas. As organizações sociais são semelhantes a esse laboratório, com a diferença que procuram “vacinas”, por exemplo, contra a exclusão social. Não digo que tenhamos 25 vacinas em produção na BVS, mas temos 25 laboratórios, e alguns serão bem sucedidos, como é o caso de uma organização numa aldeia em Rio Maior, que travou a desertificação, criou emprego e aumentou o rendimento da população.

 

O que fez essa organização?

Tudo começou com um grupo folclórico que atraía muitos espectadores à Aldeia de Chãos. Então, construíram um restaurante que serve almoços e jantares, o que faria com que os visitantes, além de verem o espectáculo, passassem o dia na aldeia. Depois criaram o programa “Pastor por um dia”, dirigido às crianças, construíram uma pousada e apostaram no turismo rural. As empresas usam essas instalações para actividades de team building, que duram três ou quatro dias. Este circuito é alimentado por produtores locais e os empregados do restaurante e da pousada são oriundos da região. Quem nasce no campo gosta da qualidade de vida que ele proporciona, e fica se tiver boas condições. A Cooperativa Terra Chã provou que é possível inverter o fluxo de desertificação.

 

Qual foi o contributo dos fundos provenientes da BVS para esse projecto?

A região é vocacionada para a produção do mel. A Cooperativa fez um estudo de mercado e viu que era um produto com muita procura. Então, criaram uma central melífera que, por exemplo, promove a qualificação dos apicultores e oferece boas condições de higiene e de armazenamento dos produtos. A central inclui um Centro de Interpretação da Abelha e da Biodiversidade, que funciona como pólo de atracção cultural. Os fundos da BVS destinam-se à construção do Centro e a equipá-lo, por exemplo, com lentes de ampliação e panfletos educativos ilustrados, de maneira a desvendar todo o processo de produção de mel nas colmeias.

 

Em Portugal e no Brasil há representantes dos respectivos governos nas BVS?

Ainda não. No Brasil falta continuidade porque os governadores estaduais trocam a cada quatro anos. Em Portugal seria interessante ter um representante do Governo na BVS porque as urgências sociais actuais obrigam-nos a trabalhar em conjunto e derrubar barreiras para resolver problemas.

 

No Brasil o Governo já adoptou projectos apoiados pela BVS. Pode dar um exemplo?

O projecto Associação Saúde Crianças Renascer, criado por uma médica pediatra, no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro. A pediatra observou que várias crianças pobres com pneumonia, que eram internadas no Hospital e tratadas com antibióticos, regressavam a casa e, por vezes, voltavam com pneumonia dupla. Eram novamente tratadas, mas as recaídas continuavam e por vezes levavam à morte. A médica concluiu que estava a tratar a doença e não o doente. Quis saber onde é que as crianças moravam e descobriu que muitas viviam em favelas, em barracas sem condições, com janelas sem vidros e tectos que deixavam entrar água. O projecto consiste em remodelar a habitação durante o internamento, assegurar que a criança e os irmãos vão à escola e em melhorar o rendimento económico da família. Nas favelas é comum encontrar famílias monoparentais, formadas pela mãe e filhos. O pai ou está preso, ou é bêbado, ou não se sabe quem é. A intervenção da Associação prolonga-se durante 18 meses nos quais a mãe aprende uma profissão que lhe assegura o valor da renda mais um ordenado mínimo. O governo do Estado do Rio de Janeiro adoptou este projecto em todos os hospitais.

Como ouvi em tempos numa reunião: “Não se traçam novas rotas em cima de mapas velhos”. Os problemas são conhecidos. A BVS apoia organizações capazes de traçar novos mapas para resolvê-los.

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