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O QUE É QUE O CAMPO TEM?
O que é que o campo tem?
2013-08-24
O que é que o campo tem?

“Não acredito!”; “É mentira!”; “Não vão aguentar nem um mês!”. Os amigos de Ana Cotrim e Pedro Varandas ficaram incrédulos perante a notícia. Como é que duas das pessoas mais citadinas que conheciam iam viver para o campo? Depois de 40 anos em Lisboa, Ana e Pedro mudaram radicalmente o cenário dos seus dias. Da capital a Varelinha (lugar perto de Ferreira do Zêzere), os mapas indicam 150 quilómetros, pouco mais de uma hora de caminho. Mas, na escala da realidade, são locais tão diferentes que se afastam de forma incomensurável. “Varelinha são só estas três ou quatro casas”, observa Ana, divertida. Contrariando todas as previsões, já vivem ali há dois anos, na antiga casa do seu bisavô. O que os moveu? Procura urgente de qualidade de vida.


Numa empresa multinacional, como responsável de recursos humanos, Pedro sentia-se “sob stresse brutal, cheio de preocupações e incompatibilidades”. Com os níveis de pressão a ultrapassarem os limites do aceitável, surgiu uma solução inesperada. A hipótese de um trabalho para Ana, na zona de Ferreira do Zêzere, desencadeou uma série de contas matemáticas e “reuniram-se os mínimos para tomarmos a decisão”. Pedro despediu-se. “Houve colegas que me chamaram maluco, outros corajoso, mas todos ficaram com inveja – no bom sentido”, lembra. Hoje, Ana trabalha como arquitecta numa empresa a 1.200 metros de casa: “São dez minutos de bicicleta ou quatro de carro”. Almoça em casa todos os dias e, quando chega troca o supermercado pela horta, onde apanha legumes para o jantar. Os filhos frequentam escolas públicas em Ferreira do Zêzere. É um transporte da Câmara que vai buscá-los e levá-los todos os dias, gratuitamente. “A redução de custos com a educação é impressionante. Pagamos só 40 euros por mês pelas escolas dos dois”, destaca Pedro como uma das grandes vantagens desta mudança. Mas a maior alteração do dia-a-dia desta família prende-se com a nova ocupação de Pedro. Sem trabalho, resolveu dedicar-se à agricultura. Com a visão própria de um gestor, abraçou um novo projecto: transformar um enorme terreno cheio de erva e mato numa horta e pomar de produtos raros. “Antes era viciado na Fnac, agora sou viciado na Agriloja”, brinca. Com esta nova ocupação perdeu oito quilos e recuperou anos de vida. “Ganhámos muito a nível de saúde a longo prazo. O ritmo e a descontração do nosso dia-a-dia não têm comparação. Conquistámos tempo em família. E paz de espírito”, resume Ana. Os filhos têm uma nova liberdade de espaço, contacto com a natureza e tempo com o pai e a mãe em conjunto. Mas será um local de futuro para eles? “Não pensamos muito nisso, pois ainda são pequenos. Sabemos que se quiserem continuar a estudar vão ter de ir para outro lado, mas não dramatizamos a questão”, responde Ana, já com uma calma verdadeiramente rural.

 

Bichinho do campo


Foi por causa da filha que a transmontana Mafalda Milhões tomou uma decisão idêntica à de Ana e Pedro. Na altura vivia “em Lisboa, na Baixa, numa casa com sete assoalhadas, perto de tudo”. Editora, ilustradora, autora, livreira, desdobrava-se ainda em formações, feiras e inúmeras viagens. “E depois ainda chegava a casa e tinha de dar 500 voltas como os cães e as pulgas para arranjar estacionamento…Estávamos tão urbanos, tão urbanos que já não dava mais”, desabafa. Reuniu os clientes na sua livraria infantil na Fábrica da Pólvora, em Barcarena, e disse: “Gostamos muito de estar aqui, mas temos de começar a cuidar da nossa família”. Decidiram então o sítio onde a livraria seria replantada: “No meio do nada, sem prédios à volta. Num local onde se tivesse brincado muito, onde se visse o mar e um castelo, e com uma árvore com copa tão grande como a livraria onde estávamos”. Missão aparentemente impossível. Mas depois de muito procurar, por um acaso Mafalda encontrou uma escola primária abandonada do tempo do Estado Novo, em Casais Brancos, perto de Óbidos, com todos os requisitos. Há cinco anos que a livraria O Bichinho de Conto mudou de morada.


O sonho de Mafalda é viver num terreno ao lado da livraria, mas enquanto não se concretiza permanece nas Caldas da Rainha, a cinco minutos de carro. A ela juntou-se a mãe que vivia na Guarda, uma irmã que estava em Águeda e outra que se dividia pelo Porto, Lisboa e Badajoz. “Essa foi a grande conquista desta história. Percebemos que a nossa qualidade de vida passava por estarmos mais juntos e não há dinheiro que pague isso”. Entretanto nasceu mais uma filha e as suas duas meninas “ganharam uma liberdade diferente”. “Na cidade, chegamos a um ponto em que as crianças saem de divisões para entrar em novas divisões. Eu quero que as minhas filhas andem por aí a correr, a subir às árvores, a esfolar os joelhos”.


Ao fim-de-semana, em vez de fazer as compras pela internet como em Lisboa, Mafalda vai a pé ao mercado. “Com dez euros faço a minha semana toda de hortaliça e fruta”, diz. E sente que, num piscar de olhos, consegue ter acesso a programas muito diferentes: “Vamos ao jardim, ao castelo, à praia, à lagoa. Mesmo tendo de voltar para a livraria para trabalhar, é mais fácil”. Durante a semana, ganhou paz e horizonte. “No campo tudo tem mais profundidade. A rua não acaba ali. E não quer dizer que estejamos em contemplação, mas aqui vemos o dia a acontecer. Ganhamos consciência das suas cores, da sua luz”. O saldo da mudança é positivo: “Mesmo nestes tempos de crise tão exigentes e trabalhosos, aqui sinto que tenho a compensação de que, quando me quero sentar, sento-me”.

 

Poder sem palavras


Descansar era um luxo a que Frederico Lucas não se permitia. Começava a trabalhar antes das 8:00 e terminava cerca das 24:00. Em cinco anos aumentou 40 quilos, fruto de uma “ansiedade completamente assassina”. “Tinha tempo para tudo menos para viver”, reconhece. Em ruptura com o ritmo dos seus dias em Lisboa, partiu para Trancoso, no distrito da Guarda. “Apesar de me parecer que cheguei ontem, já cá estou há sete anos. As pessoas da terra quando se referem a mim já falam de uma pessoa de Trancoso e não de Lisboa”. Manteve-se como consultor na área da comunicação, em regime de teletrabalho, e reduziu os clientes ao núcleo mais rentável. Os rendimentos desceram, mas as despesas também. E muito. “Agora já me habituei a viver com pouco, o que é uma chatice, porque também cobro pouco (risos). Em Lisboa, gastamos facilmente 50 euros num dia. Em Trancoso, vivo por menos de 10 euros por dia. No actual contexto é um luxo. Se faço um trabalho e ganho 3.000 euros, consigo um ano de autonomia. Isto é um grande poder”. Ainda hoje o que mais destaca é a capacidade que ganhou de mandar no seu tempo. “Das pessoas com quem trabalho, sou sempre o que termina mais cedo. Páro por volta das 17:00 e os outros ficam muito admirados pois só acabam às 20:00. Vou ter com os meus filhos, comer um gelado, correr ou simplesmente descansar antes do jantar”.


Ao fim de todos estes anos, nunca pegou numa enxada. Mas “aprendi a conhecer e a valorizar a ruralidade”. E exemplifica: “Para mim, a chuva já não é a impossibilidade de andar de mota. Já é melhorar os solos e os lençóis de água, verificar se a barragem conseguiu encher. Passou a ter um significado completamente diferente”. Reconhece que a sua relação com a natureza “aumentou muitíssimo” e sente-se agradecido: “Faça chuva ou faça sol, o meu filho nunca mais teve problemas respiratórios. A qualidade do ar é fabulosa”. O sentido de comunidade, para o bem e para o mal, é algo que também valoriza muito. “Há pessoas que se preocupam contigo, mesmo não sendo da tua família. Sou incapaz de sair de Trancoso sem avisar que vou sair, para não estranharem. Há grande entreajuda”. E no campo ganhou uma tranquilidade ímpar: “Por mais stressante e exigente que seja o trabalho, ganhei consciência de que o sol na janela do meu escritório entra sempre da mesma maneira, às mesmas horas do dia. Venha o que vier do telefone ou do e-mail, quando saio para tomar café a senhora da pastelaria pergunta-me o que quero sempre da mesma forma e demora o mesmo tempo a servir-me. É uma segurança que não tenho palavras para descrever”.

 

Viver com os espinhos


Mas como em tudo, nem a cidade é a má da fita, nem o campo a derradeira salvação. Os protagonistas destas três histórias conseguem claramente identificar os maiores senãos das suas experiências de mudança para o meio rural. Ana Cotrim destaca a diferença de produtividade e organização profissional. “A bitola é muito baixa, trabalha-se muito mal a um nível transversal e é assustador pensar que o Portugal rural é assim…”. Mafalda Milhões concorda: “É difícil despir Lisboa. O país não está assim todo tão desenvolvido. Em Lisboa tudo é já. Aqui parece que estamos no centro da terra. Tudo demora tempo, por isso a toda a hora pegamos no carro e vamos a Lisboa. Não é fácil sobreviver só das estruturas locais”. Além disso, as mentalidades são diferentes e é necessário um esforço de adaptação. Mafalda, por exemplo, ainda sente que é vista como emigrante. “Não nos vêem com os melhores olhos. Somos gente que se mexe muito, temos outro ritmo, somos malta que faz e luta contra esta inércia todos os dias”.


A Ana também lhe causa impressão a falta de privacidade social. “Ao fim de um mês já toda a gente sabia quem éramos, o que fazíamos, onde morávamos, onde trabalhávamos… e nós não conhecemos as pessoas. Dão muita importância a coisas que em Lisboa já não se dá”. A perda de identidade é outro aspecto apontado por todos. Parece que o campo quer ser cidade. “Temos de propor-nos a encontrar essa dimensão mais autêntica, porque há uma sede de outra coisa”, constata Mafalda. E Frederico complementa: “As pessoas que vivem nos territórios rurais tendem muito para o modelo suburbano. As miúdas de Viseu vestem-se como as de Almada e Odivelas. Há uma descaracterização e uma vergonha de assumir a identidade. Uma pessoa que tem as suas origens no campo tem dificuldade em valorizá-las”.
Questionados em relação ao que têm mais saudades de Lisboa e que gostariam de teletransportar para as suas novas moradas, rapidamente imaginam. Ana Cotrim traria a praia, Pedro Varandas uma mega loja de bricolage, construção e jardinagem, Mafalda Milhões o Teatro Nacional D. Maria e Frederico Lucas, simplesmente, os amigos. Pesando os prós e os contras, nenhum deles voltaria agora à cidade. Pedro deixa apenas uma das razões: “Levantar-me de manhã, tomar o pequeno-almoço e vir beber o meu café para o alpendre, com esta calma e os pássaros de fundo… Tenho a certeza que haveria milhares de pessoas que dariam muito para ter isto…”.

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