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CIDADÃ EM PRIMEIRO LUGAR
Cidadã em primeiro lugar
2014-03-05
Cidadã em primeiro lugar

Com uma carreira profissional estimulante e uma vida que vale a pena viver, Laurinda Alves ainda hoje volta para casa espicaçada pela voz que sopra ao ouvido as respostas inquietantes que não quer deixar de dar, que não se quer arrepender de não ter dado.

Professora universitária, formadora na área da comunicação, jornalista, autora e apresentadora de programas de televisão, Laurinda Alves passou a vida inteira a dizer “atreve-te” e a rever o seu papel no mundo no tempo que ainda lhe falta viver. Fez metade do percurso sozinha, achando que deveria corresponder à herança familiar de firmeza e orgulho, mas na outra metade rodeia-se de pessoas inspiradoras que a ajudam e encaminham, com a certeza de que os problemas fazem parte da vida e, se não os partilhamos não daremos às pessoas que nos amam a oportunidade de nos amar o suficiente.


Criou a emblemática revista XIS, que durou até 2007, fez quase tudo o que havia a fazer como jornalista, passou pela RTP, TSF, Independente e Público (entre outros projectos editoriais), foi distinguida com o grau de Comendador da Ordem do Mérito pelo debate e defesa das questões educativas, participa regularmente em encontros, debates, conferências e seminários em escolas e lugares menos comuns como cadeias e centros de recuperação onde sente que fica mais próxima daqueles que vivem “à margem”. É voluntária em múltiplas frentes e dá a cara por várias causas da sociedade civil. É cidadã em primeiro lugar.
E é isto, que já não é pouco. É certo que as pessoas tendem a pensar que a realização profissional é um golpe de sorte, algo que talvez desça sobre nós como o bom tempo se formos suficientemente afortunados. Mas aos 52 anos Laurinda Alves sabe que não é assim que funciona. A sua realização foi a consequência do esforço pessoal. Lutou por ela, procurou-a arduamente, insistiu nela e até viajou pelo mundo à sua procura. Por vezes precisa de rearrumar os seus armários interiores, baralhar e dar de novo, mas nunca perde a noção de onde vem e para onde quer ir.

 

 

Como coordenadora em Portugal do Dialogue Café, qual o balanço que faz desta iniciativa sem fins lucrativos que utiliza as tecnologias de vídeo de última geração para permitir a conversa cara a cara entre vários grupos de pessoas em todo o mundo?


O Dialogue Café é um projecto com incrível potencial, que proporciona diferentes trocas de experiências e permuta de aprendizagens. Os participantes estão ligados através de telepresença, em ecrãs que permitem ver os interlocutores em tamanho real assegurando que, estando em diferentes pontos do globo e pertencendo a culturas distintas, estas pessoas possam conversar e partilhar experiências. Ao fim de dois anos em Portugal, acreditamos que vamos finalmente ter um envolvimento maior de todos os 12 países que já estão ligados e ter uma programação global.

 

O que tem de especial este projecto?


O conceito é apaixonante. Eu não me importaria de estar ligada a ele mesmo trabalhando “num buraco debaixo da terra”, mas fazê-lo inserida numa instituição com a Gulbenkian, com estas condições logísticas, é ainda mais estimulante. O que o Dialogue Café permite é a multiplicação de ideias, a cartografia de talentos, o ponto de encontro entre pessoas que estão em vários cantos do mundo. Já aconteceram coisas extraordinárias aqui!

 

Por exemplo?


Por exemplo? Já salvámos uma vida! Pusemos em contacto vários neurocirurgiões entre Ramallah, Cleveland e Lisboa. Uma criança em Ramallah tinha um cancro invasivo e asfixiante no rosto e os médicos locais precisavam de aconselhamento científico ao mais alto nível. Isso foi possível colocando-os em contacto com especialistas em Cleveland e Lisboa, e hoje a criança esta viva! Esta tecnologia tem grande potencial médico, clínico, cirúrgico e de investigação, sobretudo em países em que a partilha do conhecimento é mais difícil. Permite criar verdadeiros hospitais virtuais. Mas tem outras vantagens, como colocar alunos de vários cantos do mundo em contacto, ser um ponto de encontro, um amplificador de boas práticas, ter sério impacto social. Colocamos ao serviço da sociedade civil, sem custos, uma tecnologia caríssima e sofisticada, que pode ajudar a escalar projectos.

 

Qual a importância da comunicação no mundo actual e especificamente nos projectos de responsabilidade social e de cidadania?


Portugal tem uma clara desvantagem competitiva face a outros países, porque na escola não somos ensinados a falar em público, a debater pontos de vista opostos, a improvisar. Na escola americana, por exemplo, as crianças a partir dos quatro, cinco anos são treinadas a recitar, improvisar, apresentar ideias para uma audiência. Os negócios, a inovação, as causas sociais têm de ser bem comunicados senão ficam no plano das ideias. Dou sempre o exemplo do Banco Alimentar Contra a Fome. Uma ideia excepcional muito bem comunicada. As pessoas só aderem ao que conhecem. Não saber comunicar os projectos é a diferença entre matar ou fazer florescer as ideias. É, verdadeiramente, uma questão de vida ou de morte.

 

É por isso que defende a criação de um Plano Nacional de Comunicação, semelhante ao que aconteceu com o Plano Nacional de Leitura?


Sim. Mas talvez ainda não seja o momento. Em tempos ainda tive uma reunião com o então secretário de estado da Educação, adoraria atravessar-me por este desígnio nacional, mas este projecto exige um orçamento e em tempos de tanta escassez acredito que haja outras prioridades. Mas em alguma altura os currículos escolares terão de mudar.

 

Como jornalista sempre se esforçou por mostrar um Portugal que dá certo e de que todos nos devemos orgulhar. Mas sempre que ligamos a televisão, parece que estamos diante de um pelotão de fuzilamento: as notícias da crise vêm em rajada. Como é possível contornar este gigantesco compressor de ansiedade?


Pessoalmente, sempre procurei perceber onde posso acrescentar valor. Com os meus programas de televisão, por exemplo, como o Portugueses sem Fronteiras ou o Feitos em Portugal, procuro dar visibilidade a pessoas que fazem a diferença, cheias de sonhos, esperança, optimismo. Inconformados cuja luta se faz no dia-a-dia.

 

É o seu contributo diário para construir um mundo um bocadinho melhor para todos?


Sim. Procuro cartografar as pessoas inspiradoras e dá-las a conhecer, seja na imprensa escrita ou na televisão. Acredito profundamente no contributo individual. Uma pessoa pode realmente fazer a diferença. Procuro estar em contra-corrente, fazer coisas diferentes, com um olhar alternativo para os problemas. Fiz isso com a Xis, uma revista muito disruptiva, mas também com os programas de televisão. Acredito que é possível mudar o sistema dentro do sistema – não fora dele.

 

Na sua vida já esteve ligada a vários projectos, muitos com um cunho de intervenção social. Como foi libertar-se de alguns deles tão marcantes, como a revista Xis?


Às vezes, só matando os projectos é que conseguimos avançar. Temos de nos recriar com muita frequência, já não há projectos para a vida. A longevidade dos projectos pode variar, mas o importante é construirmos expectativas realistas e termos um olhar construtivo para o mundo que nos rodeia. Quando comecei a dar aulas, algo que me apaixona profundamente, foi acreditando nesta máxima. Dou uma cadeira na Universidade Nova, de Comunicação, Liderança e Ética a 200 alunos por semestre dos segundos anos da licenciatura de Economia e Gestão. Tenho crescido em liberdade interior, cada vez mais independente e centrada nos meus valores. E as surpresas acontecem!

 

Qual a importância do voluntariado na sua vida?


A questão hoje em dia não passa por saber se queremos fazer voluntariado ou não. A questão que temos de nos colocar a nós próprios é: qual a minha área de voluntariado. E agir! Faço muito voluntariado pontual, faço pontes, dou a cara, ajudo a credibilizar projectos. Dou a minha voz a quem não tem voz ou ajudo a amplificar a voz de outros igualmente importantes. As minhas áreas de eleição são a deficiência, cuidados paliativos, projectos de minorias e empreendedorismo. Por isso, sou voluntária da Associação Salvador e da Reklusa, fiz voluntariado de cabeceira em Cuidados Paliativos no Hospital da Luz durante três anos, sou embaixadora dos Leigos para o Desenvolvimento e da Acredita Portugal, que acabou de lançar a empreende.pt, plataforma de formação online focada nos temas do empreendedorismo e negócios.

 

Há algum projecto especialmente estimulante em que esteja envolvida?


Sim. Sou voluntária da Fundación Lo Que de Verdad Importa, embora me tenham oferecido o pomposo cargo de Presidente Honorária em Portugal. Estamos a preparar, para 14 de Março de 2014, no Campo Pequeno, em Lisboa, do 1º grande Congresso O Que De Verdade Importa, de entrada livre, especialmente pensado para estudantes universitários e pré-universitários, em que vários oradores nacionais e estrangeiros subirão ao palco para falar de temas apaixonantes e transformadores. Vamos ter convidados como a família que sobreviveu ao tsunami da Tailândia e que deu origem ao filme O Impossível, ou Bento Amaral que ficou tetraplégico sem que isso o impedisse de ser campeão do mundo de vela adaptada ou um reconhecido especialista em vinhos. São pessoas que nos fazem acreditar no potencial humano e que nos falam na primeira pessoa da força que nos dá força. Numa altura em que continuamos a ter a lógica perversa das desgraças a circular nos media, é preciso encontrar momentos alternativos para falar de pessoas inspiradoras. Somos ainda uma minoria? Sim. Mas são as maiorias podem apoiar aberrações. São as minorias que fazem avançar o mundo.

 

Fotos Mariana Sabino 

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